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Pesquisas em Arte

DADAÍSMO

(texto originalmente publicado em ARCURI, Christiane. Nuno Ramos – narrativas visuais. Rio de Janeiro: Ed. Multifoco, 2015 – fruto Tese de Doutorado “A arte de Nuno Ramos: um relevo na estética da contemporaneidade”, UFF, 2014).

O ato criador não é executado pelo artista
sozinho; o público estabelece o contato
entre a obra de arte e o mundo exterior,
decifrando e interpretando suas qualidades intrínsecas e, dessa forma, acrescenta sua contribuição ao ato criador.

Marcel Duchamp


Formado em 1916 em Zurique por jovens franceses e alemães que fogem do serviço militar à época da Primeira Guerra Mundial, o Dadaísmo é um movimento de negação e de reação à época. Tal atitude não passa de uma “grande explosão de atividades que tem por objetivo provocar o público, as noções tradicionais de bom gosto e a libertação das amarras da racionalidade e do materialismo” (STANGOS, 2000, p. 85).
Dadaísmo (também chamado de Dadá) é uma palavra francesa que significa, entre outras coisas, “cavalo de pau’ e passa a ser considerada a marca da arte espontânea, livre de conceitos morais e sociais que são divulgados no espaço conhecido como Cabaré Voltaire.

Ao grupo de artistas dadaístas pouco importa a circunstância que deu origem ao nome e muito menos a acepção anterior da palavra – a partir de então, a palavra dadá passa a designar um estado de espírito.
Suas características predominantes são: a natureza combativa e a ruptura com a tradição estética, a busca por novas formas de expressão, um anseio de libertação das amarras morais, políticas e religiosas que impedem a emancipação e o desenvolvimento integral do homem, assim também como a busca por
uma arte autônoma e reclusa em si mesma, além da repulsa por conceitos e tendências de linguagens artísticas anteriores.

Por meio da arte, os dadaístas propagam a visão que têm do mundo, na qual predominam atitudes subversivas, niilistas, anárquicas, céticas e destrutivas. O movimento dadaísta se declara contra tudo e contra todos, inclusive contra si mesmo. Os artistas desacreditam da razão e de seus mitos, não acatam nenhuma autoridade, reclamam liberdade absoluta, não se submetem a convenções e põem tudo em dúvida.
Cultivam a destruição pela destruição e usam, como arma de combate, a sátira e a galhofa. A arte nada tem a ver nem com o belo nem com o feio; ela visa, acima de tudo, à originalidade, expressar-se como nunca antes. Assim como a arte não sintetiza a beleza, não representa igualmente a verdade, a verossimilhança. Os artistas amaldiçoam a arte como mimese. Desse modo, a arte dadaísta pode ser definida como construção conceitual e fabricação de novos parâmetros estéticos no lugar da mera repetição de modelos e convenções vigentes até então. A arte não precisa de inspiração de outras artes
antecedentes. Ela não deriva nem da razão, nem da fantasia, tampouco do sentimento, mas deve resultar, na medida do possível, de um processo automático e mecânico.

O movimento dadaísta divulga suas aspirações conceituais e artísticas por meio de chás literários, conferências e sessões de declamação no Café Voltaire. Contra tudo que é pomposo, convencional ou maçante nas artes até então, os seguidores dadaístas admiram a natureza e as coisas naturais e são contra todas as fórmulas impostas pelo homem. Conforme Elger (2005, p. 7), o Dadaísmo é o responsável pela expressão de um caráter de oposição às atitudes sociais e políticas da época. Os trabalhos artísticos são contraditórios, irracionais e muitas vezes sem sentido; provocam o público em eventos de protestos
com escândalos que terminam em tumulto, muitas vezes.
Os princípios do Dadaísmo são difundidos em pinturas, esculturas, poesias e músicas. A pintura é uma forma amplamente utilizada, e os pintores dadaístas são guiados por uma anarquia instintiva, não hesitam em pormenorizar as formas, as técnicas e a temática das pinturas. Um exemplo disso são
os quadros dos antimecanismos ou “máquinas de nada”, nos quais o tema central é totalmente inédito para aqueles tempos. Surgem também as colagens que, muitas vezes, são misturadas às pinturas. Trata-se da reunião de materiais aparentemente escolhidos ao acaso, onde podem ser lidos textos elaborados com recortes de jornais de diferentes formatações.
Apesar de algumas manifestações públicas ainda persistirem isoladamente com caráter libertário em relação à expressão artística e literária, nota-se que, por volta de 1921, o movimento dadaísta é pulverizado aos poucos em virtude de outros tantos movimentos e correntes artísticos que se
propagam em várias regiões. Como mais um movimento de vanguarda do século XX, o Dadaísmo também contribui com novos parâmetros artísticos, quando seus participantes inovam ao atribuir valor estético a objetos e a elementos usuais do cotidiano. Na verdade, o que é alterado é o conceito que se
aplica a um determinado elemento/objeto/material.
O Dadaísmo é, pois, reconhecido por sua irreverência artística e por sua crítica ao capitalismo e ao consumo desenfreado e alienado das sociedades vigentes. Marcel Duchamp, em 1913, ao afirmar que “será arte tudo o que eu disser que é arte”, aloca os objetos manufaturados de consumo popular, escolhidos ao acaso, como ready-made (o que já está pronto), ou melhor: tais objetos, quando eleitos pelo artista, tirados de seu contexto original e destituídos de funcionalidade, passam a ser considerados obras de arte. Com o ready-made, o artista dadaísta enfatiza a hibridez de elementos ao combinar o produto industrializado com o artesanal. A assinatura, que torna a obra individual e irredutível, é colocada precisamente sobre o objeto. Desse modo, questiona-se o conceito da essência da arte, tal como tem sido entendido desde o Renascimento, isto é, como criação individual de obras singulares. Sobre essa
junção do industrializado com o artesanal, Chipp cita o testemunho de Hannah Höch, em Dadá photo montage:

Todo o nosso objetivo consistia em integrar os objetos do mundo das máquinas
e da indústria ao mundo da arte. Nossas colagens tipográficas ou montagens
pretendiam realizar isso impondo, sobre
uma coisa que só podia ser feita à mão,
a aparência de uma coisa que havia sido
totalmente feita à máquina. Numa composição imaginativa, costumávamos reunir elementos retirados de livros, jornais,
cartazes ou folhetos, num arranjo que até então nenhuma máquina podia compor
(CHIPP, 1993, p. 401).

Quando o termo ready-made foi usado pela primeira por Duchamp, ele havia acabado de comprar, em 1915, numa loja de ferragens, uma pá de tirar neve. Para funcionar como tal, um ready-made deve ser posto diante do espectador de modo ostensivo e com a intenção de promover uma experiência antiestética e descontextualizada – o artista não retrabalha o objeto, somente o transporta para locais habituais de exposição.
Mesmo que possamos entender como objetos cotidianos podem, inesperadamente, ser vistos a partir de uma dimensão estética, é importante lembrar que, para Duchamp, o ready-made é uma apropriação do que já está feito, sendo a transposição dos objetos uma finalidade prática e não artística. São objetos
de ordem industrial, elevados à categoria de obras de arte. São objetos sem importância estética, mas que, com a intervenção do artista (pelo fato de terem sido escolhidos por ele), convertem-se em objeto conceitual, com caráter de obra de arte.

O discernimento da escolha desse ou daquele objeto não é plástico, mas crítico ou filosófico. Segundo Sant’Anna (2003, passim), esse procedimento é uma estratégia de deslocamento, sendo este um traço da personalidade de Duchamp, que o faz não necessariamente por estética, mas aparece em tudo o que
fez, pois até seus trocadilhos são metonímicos, da mesma maneira que quis substituir a obra pela ideia da obra.
Para tanto, os dadaístas utilizam objetos comuns do cotidiano para apresentá-los num novo contexto conceitual e artístico. Apesar de serem usualmente vistos no dia a dia, esses objetos, quando deslocados de sua utilidade funcional, são empregados pelos artistas como simuladores de outros valores artísticos instituídos por meio de suas formas, texturas e cores. Novas configurações conceituais e estéticas se
impõem, contrariamente ao que até então se entendia e se reconhecia como arte.

Uma vez retirados todos os valores estéticos adquiridos e conservados até o momento pelas academias, surge a escultura Dadaísta. Os artistas se dedicam por completo à experimentação, à improvisação e à desordem. Os ready-mades de Marcel Duchamp não pretendem outra coisa senão acabar com os conceitos de arte e artista, expondo objetos do dia a dia como esculturas. O ready-made, cuja escolha é fundamentada numa relação de indiferença visual excluindo-se a tentativa de fruição estética, é uma forma de caracterizar essa nova postura difundida por Duchamp:

A palavra ready-made só apareceu em
1915, quando fui aos Estados Unidos. Ela
me interessou como palavra, mas quando
coloquei uma roda de bicicleta sobre
um banco, o garfo invertido, não havia
ainda qualquer ideia de ready-made ou coisa parecida, era apenas uma forma de
distração (DUCHAMP apud CABANNE,
1987, p. 79).

A obra, de acordo com os conceitos defendidos pelo Dadaísmo, não deve ser fruto do gosto estético, mas de cálculos. Não deve ser apreciada apenas como uma pintura, mas absorvida por meio das relações simbólicas (e alegóricas) subjacentes a ela. A partir de uma visão discordante da arte vigente, Duchamp assume uma nova atitude: a criação não pode ser considerada um resultado apenas de um produto estético, fruto de mero hábito; o objeto torna-se objeto de arte quando pode ser reconhecido por entre a moldura que limita o aspecto retiniano. Duchamp explica-se dizendo que a antiarte proposta pelo Dadaísmo coloca em questão, sobretudo, o comportamento do artista tal como as pessoas o veem. Assim, renunciando à relevância da estética do elemento artístico, Duchamp, por meio da obra O grande vidro, aponta para o esfacelamento do objeto de modo que a sua (re)apropriação não detenha o foco
artístico apenas a partir da representação mimética do objeto. À obra cabe destacar a relação do objeto estético com seu campo espacial na medida em que esse campo favoreça novas perspectivas conceituais de representar o objeto; o artista restringe a importância exclusiva dos elementos pictóricos na obra. Octávio Paz descreve O grande vidro:

O quadro de Duchamp é um vidro transparente: verdadeiro monumento é inseparável do lugar que ocupa e do espaço
que o rodeia: é um quadro inacabado em
perpétuo acabamento. Imagem que reflete a imagem daquele que a contempla,
jamais poderemos vê-la sem que nos vejamos a nós mesmos. Em suma, o poema
e a pintura afirmam simultaneamente a
ausência de significado e a necessidade
de significar e nisto reside a significação
de ambas as obras (PAZ, 1990, p. 47).

A partir de então, percebe-se que, para Duchamp, o espaço artístico tem relação com a obra-objeto. O grande vidro é criado para um lugar específico. A escolha de espaços que permitam diferentes relações entre os objetos e o espectador ou que fundem espectador e obra são conceitualmente primordiais.
Paz (1990) nos descreve O vidro como um espelho que reflete quem está vendo a obra para que o próprio espectador se veja (e esteja) presente na construção da obra. O espaço adquire caráter de um campo de neutralidade no qual objetos e formas se fundem na representação da obra dadaísta.
Com os ready-made há, pela primeira vez, o desvio da atenção do espectador para a importância do contexto artístico na definição e avaliação de uma obra de arte; em outros termos, a importância do campo espacial-conceitual e do objeto estético provocam uma questão inovadora: “Quais são as características e condições que definem um objeto como obra de arte?” (ELGER, 2005, p. 80). Duchamp suprime sumariamente a forma: resta a ideia. Como costumava dizer, não há solução porque não há problema. Submete a arte ao mundo da representação da idealidade pura, tornando-se o mais platônico dos artistas da modernidade.
Quando propôs o ready-made, Marcel Duchamp dissociou inteiramente a questão da plasticidade da noção de arte. Ao belo e ao bom gosto, reagiu com a indiferença. Dividiu, com a impassibilidade, o mundo da arte em duas partes: antes e depois do ready-made. Naquele momento, Duchamp dava
à forma o caráter de acidente, desqualificando-a. O objeto, agora como objeto de arte, tem valor de pensamento e menos importância de forma sensível: o objeto, portanto, é mais ético do que estético e declara o fim do processo artístico como fazer, habilidade e virtuosismo.
É importante nos reportarmos à intenção artística de Duchamp, que confere originalidade à arte ao atribuir a um objeto não artístico (e recorrente na modernidade) uma representação estético-conceitual. Os objetos suscitam valor artístico quando estão inteligivelmente para além da visão retiniana: “Duchamp é o artista que exerceu maior influência em nosso século, por sua obra que é a própria negação da moderna noção da obra”, como observa Paz (1990, p. 7). Na concepção do artista, a função da obra de arte é conseguir estabelecer, inclusive, uma relação com a realidade do cotidiano. Nesse sentido, Duchamp se aproxima do hibridismo como um dos principais vetores plásticos de sua obra ao atingir um sentido extrapictural a partir da união da pintura com a escritura. Nas palavras de Brito, “Duchamp pesquisa diretamente formas de fazer arte. Formas de transformar suas ideias em produtos artísticos que tivessem um diálogo eficaz com o museu […] e com o campo ideológico da sociedade” (BRITO, 1999, p. 31).
O estranhamento, no entanto, passa a ressoar na relação entre o espectador e a obra de arte. O papel do espectador torna-se mais incisivo, pois o ato de contemplar uma obra não basta para entender as novas proposições estéticas. A percepção cede lugar à interpretação, e o olhar passa a exigir o pensamento, uma ação intelectual. Afinal, como o público poderia se aproximar de um objeto que, sendo usual no
cotidiano, torna-se distante somente por estar num espaço de exposições de arte? O desejo de confrontar o público com o conceito da arte dadaísta e com as funções originais do museu faz de Duchamp um artista que amplia os territórios e a natureza do fenômeno artístico.

Kurt Schwitters, contemporâneo de Duchamp (in CHIPP, 1993, p. 388), afirma que ocorre uma renúncia à reprodução de elementos naturais (mimese) em favor de abstrações causadas com elementos pictóricos, ou melhor: que ao conciliar elementos entre si, o artista não tem a intenção de reproduzir a natureza, mas de difundir uma expressão conceitual na obra de arte. Com a valorização estética de seus elementos, o
conceito primordial da arte dadaísta sustenta valores artísticos que ainda estão um pouco indefiníveis e, aparentemente, à época, sem propósito.


No caso dos ready-made, o que Duchamp fez foi remover objetos cotidianos do seu meio natural, libertá-los da sua função e apresentá-los como obras de arte em exposições. O resultado é uma provocação dos hábitos de irreflexão do espectador em termos de percepção e avaliação da arte. Schwitters, da mesma maneira, recorre ao material não artístico e procura, delimitando uma parte do objeto e realçando-a enquanto estrutura composicional, trazê-lo de novo para a arte tradicional.
Os materiais selecionados por Schwitters para desenvolver os princípios conceituais e estéticos do método Merz faz desse método um ato artístico que produz, por meio da junção e justaposição de materiais organizados aleatoriamente na composição, uma nova forma estética e um novo viés conceitual da expressão artística. Para a concepção e a produção da obra, qualquer elemento material pode vir a servir como elemento artístico. Schwitters diz que há uma vantagem sobre a pintura a óleo, já que pela arrumação de materiais divergentes consegue opor cores, linhas e formas contra elas mesmas – “é a sua irônica resposta ao estado de espírito da época, cujo entusiasmo pela tecnologia estava em violenta
contradição com o caos político dominante” (ELGER, 2005, p. 80). Para o Dadaísmo, não há regras nem sequência. E o desafio é justamente este: confrontar todos os elementos compositivos em detrimento de seu equilíbrio estético e em favor de sua (nova) afirmação conceitual.
Preocupado em ridicularizar a arte vigente, o Dadaísmo entrega-se a um intenso experimentalismo e (re)descobre várias técnicas de composição. A obra de arte é entendida como produto do acaso, sem interferência psíquica, nem consciente, nem inconsciente. Mesmo quando o processo e a técnica
de construção da composição são calculados, o resultado é imprevisível, um caos inovador.

A montagem é uma técnica predominante durante o movimento dadá. Como uma brincadeira, para evitar a repressão da censura, são enviados entre os artistas “estranhos cartões-postais compostos de retalhos de jornais e revistas, em que imagens contrastantes são combinadas com intenções polêmicas e desmistificadoras” (MICHELI, 1991, p. 141). De modos diferentes, a montagem é uma técnica comumente usada nas obras dadaístas. De forma original, a arte dadaísta recorre à técnica que faz da seleção e da reorganização de objetos selecionados um elemento com valor estético a partir da sua nova conceituação artística. Assim, a criação artística altera o olhar do espectador, que amplia a função do objeto, já conhecida, a partir da sua nova função ocasionada pelo deslocamento e pela recontextualização alegórica.

Referências

CABANNE, P. Marcel Duchamp: engenheiro do tempo perdido. São Paulo, Perspectiva, 1987.

CHIPP, H. B. Teorias da Arte Moderna. São Paulo, Martins Fontes, 1993.

FABBRINI, R. A arte depois das vanguardas. Campinas, UNICAMP, 2002.

MICHELI, M. de. As vanguardas artísticas. São Paulo, Martins Fontes, 1991.

PAZ, O. Marcel Duchamp – Castelo da Pureza. São Paulo, Perspectiva, 1990.

RICHTER, H. Dadá: arte e antiarte. São Paulo, Martins Fontes, 1993.

RICHTER, H. Historia del dadaismo. Buenos Aires, Nueva Vision, 1973.

STANGOS, N. Conceitos da Arte Moderna. Rio de Janeiro, Zahar, 2000.

VÊNANCIO, P. F. Marcel Duchamp. São Paulo, Brasiliense, 1986.