por Jandira Oliveira.
Retrato de Rubem Valentim, por Silvestre Silva. Fonte da imagem: mnemonista.wordpress.com
Rubem Valentim (Salvador, 9 de novembro de 1922 – São Paulo, 30 de novembro de 1991) foi um artista-plástico e professor baiano. Suas obras de arte foram inspiradas pelas culturas negro-africanas, com destaque para os signos que constituem a liturgia do candomblé.
Apesar de suas obras serem comparadas à artistas como Auguste Herbin, Joaquim Torres-Garcia e Mondrian – associados a correntes artísticas abstracionistas geométricas populares no circuito da arte na época – Rubem Valentim se destaca graças a origem e ao contexto de seu repertório formal: a cultura popular e a simbologia da religiosidade afro-brasileira.
Sua trajetória artística, com suas diferentes fases e localidades, pode ser observada a partir da mesma coesão praticada pelo artista em suas obras.
[…] suas figuras passavam a sensação de serem recortadas e coladas à tela. Como se o fundo do quadro não fosse a tela, mas o próprio espaço, com seus totens saltando do suporte para a realidade tridimensional.
(WERNECK, 1994)
Bahia (1946-1956)
Seu primeiro contato com as artes visuais aconteceu em 1946, como pintor autodidata. Realizava estudos e praticava a partir da realização de cópias de artistas do Expressionismo e do Abstracionismo como Cézanne, Matisse, Chagall, Modigliani, Torres-Garcia, Kandinsky, Klee e Fernand Léger.
Ainda que suas pinturas nesse período apresentassem um caráter figurativo – naturezas-mortas, paisagens urbanas e retratos – já era possível observar a redução dos elementos visuais a sua forma essencial.
Em 1950 participa da mostra “Novos Artistas Baianos” organizada pela Revista Caderno da Bahia. O intuito era o de fomentar uma produção artística de caráter modernista no estado.
Mesmo com a influência de artistas estrangeiros, Rubem Valentim sempre se mostrou atento e interessado pelo contexto cultural que o cercava. Suas pinturas já abordavam, em alguma capacidade, as tradições populares do Nordeste, e a cultura material e universo simbólico do candomblé – como as ferramentas de culto, seus altares e a simbologia de seus orixás.
Porém, é a partir de 1955 que essas influências se tornam a base de sua produção artística. As formas geométricas presentes nos emblemas que representam os orixás, e as cores designadas a seus sacerdotes, passam a ser utilizadas por Rubem Valentim em suas pinturas.
Rio de Janeiro (1957-1963)
Em 1957 passa a residir no Rio de Janeiro, onde permanece até 1963, e trabalha como professor assistente de Carlos Cavalcanti no curso de história da arte, no Instituto de Belas Artes.
O período marca a consolidação da estética pelo qual viria a ser reconhecido. Seu repertório formal é reduzido a um restrito número de elementos visuais: círculos, semicírculos, triângulos, retângulos, quadrados, losangos, traves e paralelas. As cores perdem o brilho, tornando-se opacas, enquanto o preto e branco ajudam a geometria dos signos a se destacarem na tela.
Esses elementos são organizados por uma rigorosa geometria, respeitando os eixos: simetricamente na vertical e assimetricamente na horizontal, o que confere simetria e bilateralidade em suas pinturas. Assim como a origem dos signos utilizados pelo artista, a organização dos elementos formais na tela faz com que algumas composições se assemelhem a esculturas e totens africanos.
A aplicação rigorosa desses princípios passar a nortear a concepção das pinturas de Rubem Valentim. Recorrendo sempre o mesmo repertório de signos (formas geométricas), paleta de cores e regras de composição, constrói seu próprio universo simbólico – e dentro dele explora uma infinidade de possibilidades compositivas, sem abdicar da coerência conceitual e estética que se tornou uma de suas principais características.
O uso de formas geométricas, de cores sólidas e o rigor de seus esquemas compositivos o levou a ser associado a pressupostos presentes nos movimentos Concreto e Neoconcreto, na época, predominantes no circuito da arte no Brasil e no mundo. Mesmo ciente do que era produzido a sua volta, porém, não aderiu a nenhum dos movimentos – reforçando que seguia apenas seus próprios princípios artísticos.
Nesse mesmo período, a partir de 1960, começa a levar suas obras para o espaço físico, produzindo murais, relevos e esculturas – apontando para novas possibilidades em sua produção artística.
Roma (1964-1966)
Sua participação no Salão Nacional de Arte Moderna (SNAM) lhe rende como prêmio uma viagem ao exterior, fazendo com que Rubem Valentim passe uma temporada em Roma entre os anos de 1963 e 1966.
Nesse período o contato com suas raízes culturais e a arte negro-africana é fortalecido. As comparações entre suas obras e a de artistas associados ao abstracionismo geométrico, baseadas pelo uso de um repertório em comum, são respondidas justamente pela forte relação do artista e sua obra com seu contexto cultural.
Enquanto o Concretismo pregava o racionalismo da forma geométrica, e o Neoconcretismo retomava a subjetividade e a maior interação entre a arte e a vida – Rubem Valentim investigava sua ancestralidade e o que ela poderia dizer sobre si próprio (sua arte e sobre a sociedade brasileira).
Ao utilizar um repertório formal frequentemente associado a linguagens artísticas predominantes na Europa, mas que, foram encontradas por Rubem Valentim na simbologia do candomblé – ou seja, na cultura de origem africana – Valentim coloca importantes questões acerca de suas obras.
Elas podem ser interpretadas a partir de uma perspectiva formal, da construção de um repertório baseado em formas geométricas, numa paleta de cores estabelecida e na aplicação disciplinada de regras compositivas. Como também a partir da transfiguração do universo simbólico presente na cultura e religiosidade afro-brasileira. Ambas perspectivas não se excluem, mas se complementam.
A submissão de uma linguagem formal de origem europeia a cultura africana pode ser compreendida como um “ato de descolonização”. Críticos e estudiosos consideram a obra de Rubem Valentim como uma realização factível do que fora defendido por Oswald de Andrade em seu “Manifesto Antropofágico”, de 1928. Nele é incentivado a criação de uma arte brasileira a partir da hibridização de referências indígenas, africanas e europeias.
Há algo de antropofágico na sua arte no sentido oswaldiano – ser produto de deglutições culturais. Ao transmudar fetiches em imagens e signos litúrgicos em signos abstratos plásticos, Valentim os desenraíza de seu terreiro e, carregando-os de mais a mais de uma semântica própria, os leva ao campo da representação por assim dizer emblemática […] os signos ganham em universalidade significativa o que perdem em carga original mágico-mítica.
(PEDROSA, 1967)
No aspecto compositivo de suas obras, observamos um aumento na presença dos signos em suas pinturas, a manutenção de seus rigorosos esquemas composicionais e a influência da têmpera (técnica onde pigmentos em pó, ou corantes, são misturados a um aglutinante, geralmente a gema de ovo) na cromática de suas pinturas. As cores tornam-se ainda mais terrosas e sóbrias, dando-os uma atmosfera solene as composições.
Brasília (1967-1991)
Rubem Valentim retorna ao país em 1967 e muda-se para Brasília. Nesse período os trabalhos tridimensionais, iniciados em 1960 ainda no Rio de Janeiro, são retomados.
Os “emblemas-relevos” consistiam nos signos, agora, materializados em madeira e fixados à tela.
Já seus “objetos emblemáticos” eram as esculturas feitas a partir dos signos materializados em madeira policromada. Se as pinturas se aproximavam dos emblemas religiosos e seriam uma apresentação mais abrangente da liturgia do candomblé, seus relevos e esculturas aproximavam-se de templos e altares.
Além de sua produção plástica, registrou suas reflexões enquanto artista em textos. Em seu “Manifesto Ainda que Tardio”, publicado em 1976 – sendo redigido, portanto, em pleno período da ditadura militar – deixava claro de onde emergia sua arte:
Minha linguagem plástico-visual-signográfica está ligada aos valores míticos profundos de uma cultura afro-brasileira (mestiça-animista-fetichista). Com o peso da Bahia sobre mim – a cultura vivenciada; com o sangue negro nas veias – o atavismo; com os olhos abertos para o que se faz no mundo – a contemporaneidade […].
(VALENTIM, 1976)
Rubem Valentim sempre se colocou a favor do intercâmbio entre povos e nações, mas contra qualquer forma de colonialismo cultural. Estabeleceu o diálogo entre a geometria presente na simbologia religiosa afro-brasileira e a geometria formal considerada europeia, aproximando o que então podia ser considerado como arcaico daquilo que era visto como moderno.
Nunca fui concreto. Tomei conhecimento do concretismo por intermédio de amizades pessoais com alguns de seus integrantes. Mas logo percebi, pelo menos entre os paulistas, que o objetivo final de seu trabalho eram os jogos óticos, e isso não me interessava. Meu problema sempre foi conteudístico (a impregnação mística, a tomada de consciência de nossos valores culturais, de nosso povo, do sentir brasileiro). Claro, mesmo não tendo participado do Concretismo, percebi entre seus valores a idéia da estrutura que se adequava ao caráter semiótico de minha pesquisa plástica. Mas posso dizer que sempre fui um construtivo.
(VALENTIM, 1969)
São Paulo (1982-1991)
Os signos e suas transformações foram a principal temática nas obras de Rubem Valentim. As investigações possibilitadas pelo universo simbólico criado a partir da liturgia do candomblé – como a forma do machado duplo do Oxé de Xangô, dos altares nagô e Pejis (santuários) – lhe tornaram “precursor de um construtivismo centrado em raízes brasileiras”.
[…] transitava e fazia a síntese entre formas associadas ao abstracionismo geométrico de linhagem europeia, canônico, e as formas que ele encontrou originalmente nas religiões de matriz africana.
(OLIVA, 2018)
Suas vivências sociais, culturais e religiosas não se dissociaram de sua produção artística – e sim a acompanharam em cada novo desdobramento encontrado pelo artista. Mesmo retiradas de seu contexto religioso originário, Rubem Valentim não remove a carga simbólica de seus signos.
Os machados e flechas dos orixás são preservados em sua obra, pois ainda remetem aos cultos afro-brasileiros. As cores sólidas e contrastantes, que ressaltam a geometria presente nos emblemas, utilizadas pelo artista são as mesmas presentes nas vestimentas dos líderes religiosos do candomblé.
Apesar da inegável origem e influência religiosa nos signos utilizados pelo artista em suas obras, elas não podem ser simplificadas a definições como “folclórica” ou “mística”. Para Rubem Valentim os signos também constituem seu repertório formal, e são o principal elemento estético de suas obras.
Através de sua produção artística – que rejeitava afiliações a movimentos estrangeiros, ou nacionais, porém, altamente influenciados por eles – contribuiu para investigação do que seria uma arte de caráter brasileiro. Buscou compreender seu contexto cultural regional, e a influência exercida por ele, mas se se isolar dos acontecimentos e discussões que o cercavam no país e no mundo.
Conteúdos pesquisados:
Rubem Valentim. Museu Afro Brasil. Disponível em: museuafrobrasil.org.br
A linguagem afro-brasileira e universal de Rubem Valentim. ARTE!Brasileiros. Disponível em: artebrasileiros.com.br
Rubem Valentim: Marco Sincrético da Cultura Afro-brasileira. Geledés. Disponível em: geledes.org.br/
Geometria da Luz, catálogo da exposição “Rubem Valentim: Construção e Símbolo”. Centro Cultural Banco do Brasil – Rio de Janeiro, de 13 de Janeiro de 1994 a 06 de Março de 1994.