– um pouco de sua biografia e trajetória artística
(texto originalmente publicado em ARCURI, Christiane. ARTE E APROPRIAÇÃO NA PUBLICIDADE – Narrativas de consumo na contemporaneidade In CHAGASTELLES, G. Ensaios de imagens – Comunicação. Rio de Janeiro, Ed. Multifoco, 2017).
Tarsila do Amaral nasceu em 1886, em Capivari (SP) e aos 16 anos foi estudar em Barcelona e o interesse pela Literatura e por desenhos passou a fazer parte de sua vida. Voltou para o Brasil em 1906 para se casar com o marido que sua família escolhera. Esse casamento mais tarde foi anulado pela grande diferença cultural existente entre os dois. A luta pela anulação do casamento sinaliza para o comportamento revolucionário de Tarsila – poucas mulheres, nesse tempo, tinham coragem de questionar decisões tomadas pela família, num tempo em que as decisões eram tomadas pelos homens.
Seus estudos artísticos tiveram início com os escultores Zadig e Montovani e ainda com o pintor Pedro Alexandrino, que pintava apenas naturezas mortas e paisagens. Mais adiante, a pintora viria retratar, através de suas obras, os fatos e acontecimentos de uma sociedade impregnada de convenções e preconceitos.
Em 1922, quatro meses depois da Semana de Arte Moderna, Tarsila retorna ao Brasil, onde mais tarde, juntamente com Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Mário de Andrade e Anita Malfatti formaram o chamado “Grupo dos Cinco”. No final de 1922 Tarsila resolve voltar a Paris, mas havia se envolvido afetivamente com Oswald de Andrade, que a acompanhou pela Europa. Tarsila teve com ele seu segundo casamento e uma parceria intelectual poderosa.
Suas telas são nitidamente cubistas (com características desenvolvidas à época pelo mestre Picasso), influência de quando estudou em Paris, mas impregnadas de uma brasilidade que se manifesta, principalmente nas cores que caracterizam o movimento chamado “Pau Brasil”. A artista registra cidades, paisagens e personagens tipicamente brasileiras.
Para presentear e impressionar Oswald, Tarsila pinta o “Abaporu”, figura monstruosa de cabeça pequena, braço fino e pernas enormes tendo ao lado um cacto, cuja flor dá a impressão de ser um sol, que em tupi‐guarani significa “antropófago”, homem que come carne humana” – é a chamada “Fase Antropofágica” – o que a leva a investir artisticamente na exacerbação da brasilidade.
A última fase da artista resultou da viagem que fez à União Soviética, uma vez que volta muito impressionada pelo que observou, principalmente pelo drama operário e pela miséria das multidões. Nessa época compõe obras como “O operário” e “2ª Classe”, fase na qual chegou a ser presa por suas ideias políticas.
Tarsila do Amaral morre em São Paulo no ano de 1973 de parada cardíaca, quando se recuperava de uma operação de vesícula.
Atravessamentos da arte na publicidade –
A essência de Tarsila
O lançamento do perfume Tarsilla Rouge, criado pela empresa de cosméticos O Boticário para comemorar o dia internacional da mulher no ano de 2006, faz referência à obra “O autorretrato (Manteau Rouge)” da artista plástica modernista Tarsila do Amaral (1886-1973). O slogan “Tarsila Rouge homenageia o poder e a atitude da mulher brasileira” veiculado pela empresa O Boticário é um texto midiático que se apropria da imagem / o autorretrato de Tarsila do Amaral para que algumas relações estético-sociais pautadas no senso comum sejam estabelecidas com o perfume feminino.
“Essa época era altamente preconceituosa em relação à mulher, mas Tarsila rompeu com todos os tabus que as cercavam, casando‐se duas vezes, quando a maioria das mulheres submetia‐se à vontade dos pais e dos maridos”. Esse foi o texto publicado na campanha do perfume para comemorar o dia internacional da mulher. E associado ao perfume Tarsilla Rouge – [as mulheres] “Primeiro, casando‐se com homens escolhidos pela família e depois se submetendo a uma vida familiar em que ela não tinha voz ativa”.
A partir desses dados, parece que o fato de Tarsila ter sido uma artista plástica importante no campo da arte, esse dado não merece destaque, de imediato, para a campanha do perfume. Ou melhor, a apropriação da obra de arte que se pretende relacionar ao perfume se dá a partir da aparência feminina do (auto)retrato da artista. Não é a primeira vez que constato a predominância da vida íntima de um artista exposta com mais veemência do que à sua própria obra que a tornou, de fato, (re)conhecida.
Em contraponto, o lançamento do perfume feminino da marca O Boticário numa data especial e simbólica pretende associar o autorretrato da artista mesmo que do século passado ao cotidiano do século XXI. O anúncio do perfume feminino é uma comunicação imagética que está vinculada às qualidades essenciais da figura feminina exaltada pelo autorretrato de Tarsila – moderna e elegante; a imagem, notadamente, traz princípios sociais e emergências no campo estético que dialogam com a mulher de hoje. A publicidade de O Boticário recupera a memória um tanto “feminista” que se tem no decorrer dos tempos sobre Tarsila do Amaral. Mulher revolucionária, em termos políticos, e porque não acrescentar, mulher vanguardista no que diz respeito às questões plástico-estéticas – condizentes, por assim dizer, com a seleção de cores fortes e marcantes estritamente ligadas às formas estilizadas na postura altiva do seu autorretrato. E é justamente esse conjunto (aparente) de adjetivos visuais das quais o perfume se apropria no aspecto mercadológico.
Nessa acepção, o anúncio articula‐se a um imaginário social que inclui a visão idealizada de um momento anterior. Momento este tido como ponto de referência na construção de um discurso centralizado numa personagem simbólica no campo da arte correspondente no presente pela rememoração. Ou melhor, a rememoração amplia as narrativas sociais e estéticas ao partir do pressuposto de que as formações culturais, ao longo de sua história, elaboram para si um sistema articulado de ideias e imagens, de representações coletivas para, através delas, construírem suas identidades e singularidades.
Em “Manteau Rouge”, Tarsila do Amaral está com um vestido de Jean Patou (1887-1936), um estilista renomado. Com o vestido, o retrato da artista destaca a partir de sua própria imagem a ideia que se tem na época sobre uma mulher “forte” e de bom gosto. Numa posição hierática, a artista faz uso de uma paleta de cores que destacam os relatos de sua personalidade. Há, nesse sentido, a relação entre os discursos que correspondem à memória (da artista) e à comemoração de uma data especial – o dia internacional da mulher -; um discurso que se pauta em outro, e que advém da rememoração.
A apropriação da obra de Tarsila tem o efeito de atrelar a memória ao objeto de consumo – o perfume feminino -, que através do interdiscurso, volta hoje a re-significar. O anúncio publicitário ao ressignificar o sentido social entre as imagens distintas, aproxima os valores culturais e atualizam as narrativas do consumo.
Referências
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ESTEVES, R. F. e CARDOSO, J. B. F. Formas de apropriação da arte pela publicidade. PPGCOM – ESPM, Comunicação, mídia e consumo. Rio de Janeiro, Ano 10, nº 10, vol. 28, p. 137-168, maio / ago 2013.
ROCHA, E.; PEREIRA, C. e SICILIANO, T. “Consumo de experiência” e “experiência de consumo”: uma discussão conceitual. In: LOGOS 43, Dossiê: Cotidiano e Experiência. Vol.22, Nº 02, 2º semestre 2015.
______. Cultura e imaginação publicitária. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Mauad, 2013.
VENTURINI, M. C. e SCHOLTZ, A. “A rememoração/comemoração da mulher em O Boticário”. In: VOOS Revista Polidisciplinar Eletrônica da Faculdade Guairacá, Guarapuava – PR, Vol. 03, Ed. 01 (Jul. 2011) Caderno de Letras – Estudos Linguísticos, p. 19-28. Disponível em <www.revistavoos.com.br> Acesso em: 10/03/2017.
https://tarsiladoamaral.com.br
(Pesquisa Gabriela Rodrigues, Gabriel Pires, Rodrigo Talon e Heitor de Souza, CAp, turma 2C, 2023).