por Jandira Oliveira.
Retrato póstumo de Victor Meirelles, por A. Pelliciari (1915). Fonte da imagem: Museu Victor Meirelles.
Victor Meirelles de Lima (Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis, 18 de agosto de 1832 – Rio de Janeiro, 22 de fevereiro de 1903) foi um artista-plástico e professor florianopolitano.
Seu repertório artístico inclui obras acadêmicas que retratam paisagens brasileiras, além de figuras e pinturas de gênero do Segundo Reinado. No entanto, são suas pinturas históricas que o tornaram um dos pintores neoclassicistas brasileiros mais célebres do séc. XIX.
Anos iniciais
Nasce em Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis, filho de humildes comerciantes da região – o imigrante português Antônio Meirelles de Lima e da brasileira Maria da Conceição. A casa onde cresceu atualmente abriga o museu batizado com seu nome.
Ainda pequeno demonstrou interesse pelas artes e praticava técnicas de desenho e pintura retratando as paisagens de sua cidade natal. Por volta de 1845, inicia seus estudos artísticos sob a tutela do engenheiro argentino Marciano Moreno.
Victor Meirelles tem seu talento reconhecido por conselheiros do império que moravam na região e que apresentam seu trabalho (aspirante artista) ao então diretor da Academia Imperial de Belas Artes (AIBA), Félix-Émile Taunay. Seus anos como estudante da instituição são importantes para compreender a produção artística de Meirelles além das questões relacionadas a seu estilo artístico.
O projeto de Brasil e o papel das Artes pt.I
O século XIX representou momentos distintos para a Europa e para o Brasil
O Velho Continente testemunhou as mudanças sociais e culturais inspiradas pelos ideais do Iluminismo. Enquanto no Novo Mundo, a coroa portuguesa ainda enxergava o Brasil como uma mera colônia de exploração.
No entanto, cercado por um conturbado cenário político tanto no continente quanto em Portugal, D. João VI começa a apreciar sua colônia como um destino viável para o refúgio da Família Real Portuguesa e, principalmente, de seu poder monárquico. Mesmo que na época ela não tivesse a mínima infraestrutura para isso.
O Brasil colônia era uma fonte de insumos e riquezas para a coroa portuguesa, portanto sua organização social era voltada estritamente para fins de exploração. Mas como unidade era praticamente inexistente: as capitanias possuíam costumes distintos e atividades autônomas entre si. Compartilhavam apenas as relações (e subordinação) a Portugal.
A produção artística local era baseada na Mimesis (aqui podemos interpretar como reprodução ou cópia, apesar do conceito ser mais amplo do que isso) de trabalhos feitos originalmente para (fins) e por religiosos. Nem a temática das obras ou a técnica demonstrada pelos clérigos e artesãos eram do gosto da corte; não eram compatíveis com a arte produzida durante a época na Europa; nem muito menos tinha serventia para o projeto de construção de uma identidade nacional para a nova sede da coroa portuguesa.
Com a chegada da Família Real, a falta de infraestrutura da colônia precisou ser prontamente solucionada. A cidade do Rio de Janeiro passa por uma série de reformas com o objetivo de adequar a região a seu novo status: a sede do “Reino Unido de Portugal e dos Algarves” (1808-1815).
Isso, porém, não sanou a falta de uma elite intelectual e cultural que ajudaria a pautar as reformas em curso. Dentre os inúmeros projetos realizados durante o período, um deles se destaca para a construção da narrativa da história da arte brasileira.
Como, por exemplo, com a fundação da Academia Imperial de Belas Artes (AIBA) institucionalizada por D. João VI em 1826, alguns anos após a chegada da Missão Artística Francesa ao Brasil no ano de 1816. O grupo de artistas e artesãos desta Missão Francesa é considerado o responsável pela idealização e execução do projeto, que tinha como objetivo a formação de profissionais para servirem aos interesses do Estado e de mão de obra especializados para indústrias recém-instaladas na região.
Baseada nos preceitos do Academicismo, a AIBA fomentou o ensino laico, livre das eventuais censuras por parte das instituições religiosas. Seus estudantes aproveitariam da liberdade compositiva e temática, além do aprendizado sobre as técnicas dos grandes mestres europeus.
A Academia Imperial de Belas Artes e a Missão Artística Francesa foram, de certo, iniciativas da coroa portuguesa de compor a produção artística nacional, principalmente pelos artistas formados pela instituição, para registrar o cotidiano e os costumes locais, os eventos comemorativos, as ocasiões solenes e a construção da imagem da nova sede do reino português.
Artes e Cultura sempre foram utilizadas como aparatos de governo, fossem eles artifícios democráticos ou não.
Anos mais tarde, com a proclamação da Independência do Brasil (em 07 de setembro de 1822) a cidade do Rio de Janeiro se tornaria a capital do Império do Brasil entre os anos de 1822 e 1889.
O Brasil pode ter saído da condição de reino unido à Portugal para a de um império independente; feito a transição de uma monarquia absolutista para uma monarquia constitucional parlamentar (numa época em que países vizinhos já estabeleciam suas repúblicas). Mas as Artes e a Cultura continuariam servindo o mesmo propósito, e Victor Meirelles terá um papel chave nesse processo.
Estudos na AIBA e ida ao exterior
Em 1847, aos 14 anos, muda-se para o Rio de Janeiro com o apoio de mecenas de sua cidade natal para iniciar seus estudos na AIBA. Continua a realizar paisagens, mas se especializa no gênero de pintura histórica.
Sua dedicação lhe rende o cobiçado “Prêmio Especial de Viagem”, fazendo com que Victor Meirelles passe uma temporada estudando na Europa (1853-1861).
Nos quatro anos iniciais do intercâmbio mora em Roma, na Itália. Nesse período o artista se encanta com as obras dos mestres venezianos/italianos, entra em contato com a estética romântica, ainda influente na época, e a estética dos Nazarenos – que priorizavam pinturas focadas em temas nobres como as de cunho religioso.
Por ser um aluno de trajetória exemplar, a bolsa é renovada por mais quatro anos. Agora em Paris, na França, se aproxima ainda mais da estética do Neoclassicismo (que já conhecera enquanto aluno da AIBA). Durante sua morada no exterior, o artista manteve contato com os acontecimentos no Brasil através de correspondências com o atual diretor da Academia, Manuel de Araújo Porto-Alegre – figura do movimento Romântico brasileiro.
Com acesso a documentos históricos de seu país e incentivado pelas correspondências trocadas, Victor Meirelles fará jus ao investimento do Estado em sua formação artística acadêmica e realizará um dos primeiros quadros que o transformaria num célebre pintor.
A “Primeira Missa no Brasil”
O quadro A Primeira Missa no Brasil (1860) foi baseado na conhecida carta de Pero Vaz de Caminha (ca. 1451-1500). Meirelles estudou o relato a fundo para que sua pintura, curiosamente, fosse o mais fiel possível.
Como nos é de conhecimento, a carta foi considerada um dos primeiros registros da história brasileira e, por muito tempo, tida como uma espécie de “certidão de nascimento” do país. Isso na perspectiva dos colonizadores portugueses, é claro.
Atualmente, sabemos que o evento não foi tão pacífico quanto retratado, seja a partir da leitura da carta de Pero Vaz de Caminha ou no registro pictórico de Victor Meirelles. Ambas exercem uma função importante em seu devido contexto: a carta como um relato sobre o deslumbre do “explorador” europeu frente à “descoberta” do Novo Mundo, tornando o momento da colonização mais idílico do que (acredita-se) houve, de fato; já a pintura, mostra a legitimação da celebração religiosa católica como o momento fundador da futura nação.
O quadro foi concebido durante o Segundo Reinado e pode ser considerado como fruto do programa cultural nacionalista fomentado pelo Estado. Nessa época, em especial, se buscavam estabelecer os “mitos fundadores” do Brasil Império enquanto nação independente de Portugal. Uma narrativa histórica que, no entanto, precisava ser construída e a criação de um imaginário nacional amparado pela cultura é parte crucial desse processo. A temática indianista, em especial, se faz presente tanto nas artes plásticas quanto na literatura do gênero Romântico.
O relato do escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral é transformado numa imponente pintura histórica – reconhecida por suas temáticas e dimensões imponentes. A cena nela representada é vendida como realidade, como um registro de um evento histórico crucial para a história do Brasil e para a identidade de seu povo.
A obra de Meirelles causou impacto na época, sendo uma das primeiras pinturas feita por um artista brasileira a ser exposta no salão do Museu de Arte, em Paris. Mas podemos dizer que o impacto perdura até hoje, considerando sua presença massiva nos livros didáticos de História e Arte, e do papel que ainda exerce no cânone academicista brasileiro.
Dentre as curiosidades relacionadas à pintura de Meirelles é que ele tenha se inspirado na obra de Horace Vernet. Na época, era comum artistas estudarem e treinarem sua técnica baseada em telas de pintores que admiravam e a influência de Vernet em Meirelles é notável, apesar de cada pintura atender as especificidades de seu contexto histórico e cultural.
Retorno ao Brasil
Victor Meirelles retorna ao país em 1861 e torna-se professor de pintura histórica e de paisagem da AIBA. Sua dedicação ao trabalho na Escola faz com se destaque entre o corpo docente da instituição e se torne referência para seus alunos.
Isso não o impede, no entanto, de continuar sua produção artística. Como um dos pintores preferidos de D. Pedro II, recebe uma série de “encomendas de estado” que, assim como “A Primeira Missa”, tornaram-se icônicas para a historiografia nacional.
Inspirada no poema épico “Caramuru” (1781) de autoria do Frei José de Santa Rita Durão (1722-1784), a tela Moema (1866) se une a várias outras manifestações culturais da época que abordaram temas ligados ao imaginário nacional, aqui especificamente o Indianismo.
O interessante desta relação entre Artes Plásticas e Literatura é que a cena retratada por Victor Meirelles não se encontra no poema. O trágico destino da belíssima índia Moema, que numa mistura de paixão e desespero se joga ao mar para impedir o retorno de seu “amado” à Europa – falamos aqui de um amor não correspondido, já que Caramuru se casara com outra índia – não faz parte do texto original de Frei Durão. Sabemos do seu último ato em vida mas, infelizmente, não o desfecho da personagem que tem uma aparição pontual no poema.
Assim percebemos que o artista demonstra profundo conhecimento da obra literária que foi de absoluta inspiração para a pintura de Meirelles: cria uma cena contextualizada aos eventos do poema para a obra, por si só, ser considerada um resumo imagético do drama literário. Isso permitiu que Meirelles tomasse liberdade estética para conceber a pintura. Idealiza o possível fim da personagem e a imortaliza, enquanto enfatiza a sensualidade e beleza já ressaltadas pelo texto original. Deste modo, a visão romantizada do povo indígena se insere no imaginário da sociedade brasileira e, como não, à estrangeira (em especial às mulheres).
O projeto de Brasil e o papel das Artes pt.II
Notável beneficiário do programa de mecenato do império, as obras de Victor Meirelles, inevitavelmente, alinham-se à proposta de renovação da imagem do país através da criação de símbolos visuais. O Estado precisa se estabelecer como redutor simbólico para que seus súditos/população se identifiquem e sintam orgulho da sua personificação nacional.
Apagam-se as imagens do Brasil colônia para construir a imagem do Brasil império, e uma nova narrativa é construída a partir de cenas e ícones que ajudem a ilustrar seus momentos históricos.
Victor Meirelles reconhecia o relevante papel cívico e pedagógico que a arte e a cultura tinha a cumprir. Comprometido com esses ideais, torna-se um dos principais artistas do Segundo Reinado e protagonista do projeto de construção identitária da nação brasileira.
A “miscigenação” de suas referências estéticas (Neoclassicismo-Barroco, Romantismo-Realismo) presentes em suas pinturas históricas conjugavam com os interesses do Estado. As cenas e personagens consideradas importantes para a “cultura nacional” são retratadas sob uma perspectiva romântica e representadas a partir de referências estéticas europeias. O realismo das composições, frente a uma presença comedida do drama, ajudaram a inserir suas pinturas no cânone brasileiro.
Dona Tereza Cristina, óleo sobre tela (1864). Fonte da imagem: MASP via Wikimedia Commons. Dom Pedro II, óleo sobre tela (1864). Fonte da imagem: MASP via Wikimedia Commons.
Esbarramos, porém, em um detalhe: essas representações atendiam ao gosto, e propósito, de uma parcela muito específica da sociedade. Na época, grande parte da população brasileira permanecia alheia a conceitos como corte, reis e impérios – mesmo quando inseridos no cânone nacional, eram retratados sob uma perspectiva específica, ou seja, europeizante.
O sentimento de nação brasileira foi construído pelas elites inspiradas numa ideia romantizada de povo que em alguns momentos beirou a criação de figuras caricatas. Os indígenas, porém, tão saudados nesse período, continuavam a ser colonizados. Os escravos representados como força de trabalho permaneciam escravizados e marginalizados na sociedade. Os mestiços (e a miscigenação com um todo) eram vistos como a essência da brasilidade e não como fruto de relações problemáticas entre senhores subordinados.
O que era sistematicamente renegado no cotidiano da nação era removido de seu contexto e alçado a patamares icônicos a fim de se construir a tal identidade nacional brasileira. A perspectiva sob quais os eventos e pessoas eram representadas era clara – e era da elite.
Início da República e anos finais
Assim como a arte foi um meio utilizada pelo Império para o registro da construção de uma identidade nacional, a República (proclamada em 15 de novembro de 1889) se vale da mesma prática imagética.
Como pode ser observado em vários momentos da história brasileira: quando se instaura o “novo” deve-se apagar o “velho”. Se expurga os resquícios dos ideais e imaginários relacionados ao passado colonial e imperial da nação.
Justifica-se a criação de um do programa cultural nacionalista acompanhado de novas propostas de renovação incluindo o ensino das artes. A “Academia Imperial de Belas Artes” passa a se chamar “Escola Nacional de Belas Artes”, e tanto o currículo da instituição quanto o corpo docente são renovados.
Victor Meirelles e seu forte vínculo com o império lhe custam caro, fazendo com que seja exonerado da AIBA. Sua produção artística passa a ser vista como datada tanto pela crítica quanto pelo público e acaba caindo no esquecimento.
Passando por dificuldades financeiras no fim de sua vida e na tentativa de manter uma fonte de sustento, Meirelles retorna à pintura de paisagens – marcantes no início de sua vida e carreira artística. Nesse período produz uma série de panoramas (retratos contínuos em 360º de grandes dimensões), um deles sendo da cidade do Rio de Janeiro.
Morre em pleno domingo de carnaval, na cidade carioca.
Conteúdos pesquisados:
Biografia do artista. Museu Victor Meirelles.
Victor Meirelles. Enciclopédia Itaú Cultural.
Victor Meirelles de Lima. WikiArt.
SILVA, Marcelo de S. As Relações entre imagem e texto na pintura Moema, de Victor Meirelles e no poema épico Caramuru, de José de Santa Rita Durão.
Conhecendo Museus – Episódio 11: Museu Victor Meirelles. TV Brasil.