por Jandira Oliveira.
Abacaxi, melancias e outras Frutas (Frutas brasileiras), óleo sobre tela (circa séc. XVII).
Fonte da imagem: Wikimedia Commons.
Albert van der Eckhout (c.1610 – c.1666) foi um pintor e desenhista nascido em Groninga, Países Baixos. Suas obras retrataram as paisagens e os habitantes de Nova Holanda durante o século XVII.
O que era “o Novo”
Também conhecida como “Brasil holandês”, Nova Holanda foi o nome dado as colônias holandesas localizadas em solo brasileiro. Os territórios invadidos pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais abrangiam grande parte da – então – Capitania de Pernambuco.
Na atual configuração geográfica brasileira, corresponderiam a grande parte da região Nordeste e incluiriam cidades como Recife (a capital da colônia), João Pessoa e Natal. Para saber mais sobre as invasões holandesas recomendamos o vídeo a seguir: INVASÕES ESTRANGEIRAS E REVOLTAS COLONIAIS – HISTÓRIA DO BRASIL PELO BRASIL EP.4 (Débora Aladim)
“Novas” formas de se retratar
Pouco se sabe sobre a vida de Albert Eckhout antes de sua vinda para o Brasil, mas acredita-se que tenha recebido formação artística de seu tio – o pintor Gheert Roeleffs – e trabalhado como ilustrador em Amsterdã, capital holandesa.
Em 1636 Johan Maurits van Nassau-Siegen – popularmente conhecido como conde Maurício de Nassau – foi escolhido governador-geral do Brasil holandês. Considerado um erudito e humanista, sua comitiva incluía cientistas, intelectuais e artistas, dentre eles Frans Post (1612-1680) e Eckhout. Seus integrantes deveriam reunir um conjunto de informações embasadas em pesquisas científicas, e produzirem registros dos tipos e costumes característicos do Novo Mundo.
Durante sua estadia na região (1637-1644) estima-se que tenha produzido um numeroso conjunto de retratos, paisagens e naturezas mortas. Destacam-se pinturas que representavam os costumes dos povos indígenas nativos e uma série de retratos individuais de quatro casais que habitavam as colônias.
As excursões pelos territórios sob domínio dos holandeses permitiram que Eckhout pesquisasse atentamente suas particularidades, e sua técnica artística possibilitou que o artista reproduzisse seus estudos em desenhos e pinturas de notável realismo. Seu interesse pelo Naturalismo influenciou muito de sua produção artística: ela apresentava uma qualidade descritiva; fez com que retratasse os habitantes locais sem conformar seus atributos físicos aos padrões de beleza clássica, comum a outros registros de tipos e costumes produzidos na época.
Isso fez com que fosse considerado um dos primeiros artistas europeus a ter um “olhar etnográfico” para registrar as terras descobertas (e prontamente colonizadas) nas Américas. Suas pinturas por muito tempo foram vistas, por pesquisadores e historiadores, como registros documentais legítimos da realidade presente nas colônias holandesas localizadas em solo brasileiro.
O mesmo não pode ser dito em relação ao público mais amplo. A ruptura do ideal estético europeu e as cenas retratadas em telas de grandes dimensões causaram choque e estranhamento.
Como em Dança dos Tarairiú (“Tapuias”), que representaria uma cerimônia de preparação dos índios da tribo para o confronto. Os homens formam uma roda e são o centro da ação enquanto duas mulheres, aparentemente grávidas, observam os acontecimentos afastadas do grupo. Nessa pintura os Tarairiú são representados num momento emblemático de seus costumes.
O colonizador europeu testemunha os acontecimentos fora de cena. A única indicação de que já estariam presentes na região seriam os coqueiros – originários do Sudeste da Ásia – ao fundo.
Mesmo que não tenha sido a intenção do artista, a pintura transmite a impressão de uma convivência pacífica entre o Velho Continente e o Novo Mundo: os colonizadores holandeses ocuparam as terras e iniciaram suas plantações enquanto os nativos indígenas mantiveram sua cultura viva.
Ressaltando a força da tribo e seus costumes através da fisicalidade da dança, e por ser uma representação em tamanho real, a tela se destaca de outras representações previamente feitas sobre a região e seus habitantes nativos.
Importante lembrarmos que as navegações eram viagens perigosas e se tratavam de empreendimentos caros, portanto, vistas como algo destinado “apenas aos corajosos”. Por muito tempo, o que se sabia sobre as terras do outro lado do Oceano Atlântico era baseado nos relatos desses viajantes, exploradores, colonizadores – que se preocupavam mais em provocar a curiosidade popular pelo exótico, do que narrar imparcialmente suas “aventuras além-mar”.
Uma fonte de informações questionável obviamente resultará em percepções equivocadas: inúmeras representações visuais das imaculadas terras americanas e de seus habitantes foram construídas a partir de um imaginário fantasioso.
A comitiva de Nassau tinha o objetivo de documentar as terras colonizadas com seriedade, a princípio, sob a égide do Humanismo – sendo uma das pioneiras nesse sentido. Como já mencionamos, Eckhout privilegiou uma representação fidedigna em detrimento dos gostos e cânones artísticos e estéticos de sua época. Apesar do estranhamento inicial os impactos foram positivos pois outros artistas adotaram sua postura, seu “olhar etnográfico”, ao produzirem registros sobre essas viagens.
Olhos no passado com os pés no presente pt.I
No entanto, é necessário que se contextualize a produção artística de Eckhout ao momento histórico e cultural em que foram concebidas e qual uso foi feito delas.
Por mais que o artista tenha se baseado em pesquisas de campo e se preocupado em retratar fielmente o que havia encontrado em solo brasileiro. Usado uma técnica artística e tomado decisões estéticas com o intuito de executar pinturas consideradas naturalistas: suas obras de arte retratavam as terras colonizadas e o exótico presente nelas sob a perspectiva europeia.
Por mais que quisesse evitar, o conflito entre o que era a Realidade e o que era o Idealizado se manteve.
Os esforços de pesquisa etnográfica serviram de base para a criação de pinturas particularmente pensadas para atenderem uma função decorativa. Adornaram os salões do Palácio de Friburgo, residência oficial de Nassau. Foram compradas pela burguesia holandesa, que vivia seu apogeu graças ao Mercantilismo, e viam nas obras de arte uma peça decorativa e um possível investimento financeiro.
Isso nos dá uma outra perspectiva para compreender o porquê de sua produção consistir essencialmente de retratos de “tipos humanos”, de registros relacionados as paisagens, a fauna e flora característicos da região. Nos dá outra justificativa para a dimensão das pinturas, pois agora sabemos que elas seriam protagonistas na decoração.
Mesmo que tenha rejeitado os cânones estéticos do Renascimento ao retratar os tipos e costumes das colônias holandesas, Eckhout ainda reproduziu características presentes nos registros etnográficos feitos até o séc. XVI.
Na série de retratos de casais feita pelo artista, podemos observar como ele utiliza símbolos para comunicar algo a quem observa as telas: identificam os habitantes da região; mostram as diferentes funções sociais presentes na colônia; revelam a possível interação desses indivíduos com os colonizadores (estes que passam a representar o ideal de mundo civilizado). As pinturas utilizaram alegorias que permitissem ao observador, europeu, compreender o que era representado de uma maneira abrangente – a entender do que “realmente” se tratava esse tal de Novo Mundo.
As Mulheres da colônia
Em Mulher Tupi temos o retrato de uma índia com seus cabelos trançados, e que apesar dos seios à mostra, usa uma espécie de saia branca para esconder suas “vergonhas”. Carrega um recipiente de água em seu braço e um cesto de palha com produtos manufaturados apoiado em sua cabeça. Há também uma criança em seu colo, e a diferença entre o tom de pele dos dois pode ser um indício de que a criança seja mestiça. Ao fundo temos uma paisagem domesticada com a casa grande localizada em meio ao plantio de cana de açúcar iniciado pelos colonizadores.
O retrato é peculiar não só se comparado a outras representações de indígenas feitas na época, como também a própria representação feita por Eckhout dos índios Tarairiú.
A “mulher”(e não índia) tupi parece adaptada ao convívio com o homem branco: o uso da vestimenta e os objetos que carrega, além da criança em seu colo, indicam que ela tenha uma relação de proximidade com os colonizadores. Os Tarairiú são retratados nus, usando adornos típicos e com armas em punho num momento emblemático dos costumes da tribo. O fundo em Dança dos Tarairiú faz alusão a uma natureza intacta, sendo a presença dos coqueiros a única intervenção do europeu na paisagem.
Duas representações de indígenas: os Tupi são retratados sob uma perspectiva mais pacificada, como parte do ciclo agrícola da colônia, enquanto os Tarairiú demonstram uma sensação de força e selvageria, praticando seus rituais de combate.
Um possível indicativo das relações entre nativos e colonizadores, da forma com que os holandeses compreendiam essas tribos distintas.
No quadro Mulher Africana encontramos, novamente, indicações sobre a maternidade/fertilidade das mulheres que habitam as colônias.
Um ponto interessante sobre esse retrato é a mistura de referências culturais presentes em sua composição: o chapéu de palha e o cesto de frutas, além dos materiais utilizados para sua confecção, são de origem africana e associados ao reino do Congo.
A palmeira que aparece em destaque levanta discussões uma vez que ela é tanto associada ao Brasil quanto a África. Isso causa uma incerteza sobre qual localidade é a representada nesta pintura – seria o retrato o momento de chegada da mulher ao Brasil, ou o momento de sua partida da África? Ao horizonte é possível notar alguns navios e a beira da praia homens semelhantes ao retratado em Homem Tupi, provavelmente ela já se encontrava em solo brasileiro.
Também podemos observar um cachimbo de barro preso ao seu corpo por uma fita vermelha que combina perfeitamente com as gargantilhas e brincos de pérolas. Peças usualmente presentes no vestuário europeu. Esses pequenos, porém, significativos, detalhes deixam claro que Eckhout utiliza diversas referências culturais num retrato que deveria representar com exatidão o Novo Mundo.
Essa bricolagem cultural, porém, não é tão chamativa quanto a ausência de um detalhe: não há qualquer indício visual de que a mulher retratada fosse uma escrava. O cais e os navios ao fundo poderiam ser uma alusão ao tráfico negreiro, mas é muito comedida. Já o corpo de mulher parece virtuoso e sem qualquer sinal de ferrete ou cicatrizes que, infelizmente, eram comuns aos escravos – seus músculos definidos são indicativos de sua relevância dentro da “força de trabalho” da colônia.
O artista omite uma importante informação sobre as condições relacionadas a vinda da mulher retratada para o Brasil. Reforçando, mais uma vez, a sensação de que a relação entre colonizadores, colonizados e escravos era mais pacífica do que a realidade.
O tipo Brasileiro
Uma das construções mais emblemáticas sobre o Brasil, que influencia até hoje o imaginário tanto do brasileiro quanto do estrangeiro, é a miscigenação. Essa nova identidade característica dos trópicos seria fruto da inevitável interação entre o índio, o negro e o europeu.
No entanto, essa perspectiva não reconhece a natureza problemática e violenta das relações que resultaram nessa identidade. Não é de se espantar, portanto, que seja utilizada como justificativa e/ou desculpa para os discursos mais nocivos ainda presentes em nossa sociedade.
Em Mulher Mameluca notamos a presença de joias elaboradas e uma delicada cesta de flores. A vasta paisagem ao fundo enfatiza a suposta imensidão dos territórios sob domínio dos holandeses.
Percebemos também como a filha de uma indígena e de um europeu se apresenta como uma evolução das outras representações que compõem a série de retratos. Enquanto Mulher Tupi e Mulher Africana vestiam saias e tinham seus seios à mostra, a Mameluca aparece completamente vestida – assim como as recatadas mulheres europeias. Porém, a saia do vestido levantada, e que revela parte de sua perna ao observador europeu, reforça o ideal de sensualidade da mulher tipicamente brasileira – e então somos lembrados de que as mulheres europeias não são retratadas de maneira promiscua.
Em Homem Mestiço as vestimentas, as armas e a postura remetem a imagem do valente homem europeu, salvo por seus pés descalços que deixam claro a sua origem humilde.
A imagem e semelhança do europeu, porém jamais um legítimo. O mestiço, em sua condição de subordinado, guarda a plantação de cana-de-açúcar, grande responsável pela rentabilidade do empreendimento holandês em terras brasileiras.
Ao observamos a série de Eckhout percebemos uma tendência: quanto mais civilizada é a pessoa, mais símbolos europeus compõem seu retrato enquanto sua identidade nativa é gradativamente apagada.
Olhos no passado com os pés no presente pt.II
O “olhar etnográfico” – caracterizado pela isenção e objetividade – fora fundamental para a dedicação e escolhas estéticas de Eckhout. No entanto, também fora distorcido pelo uso de elementos culturais, e visuais, inconsistentes que resultaram em representações não tão autenticas e objetivas quanto se acreditava inicialmente.
Mesmo que tenha buscado evitar os modelos representativos que eram comuns em sua época, e tenha obtido um certo êxito em retratar as peculiaridades que observou nas colônias holandesas, Eckhout corresponde as idealizações criadas pelo europeu sobre o que seria o Novo Mundo.
Até podemos considerar que a mistura de elementos simbólicos e referências culturais fossem uma tentativa de facilitar a assimilação de uma realidade desconhecida para o espectador. Porém, suas pinturas não podem ser vistas como retratos fiéis da realidade que o artista encontrou no Brasil holandês.
Assim como muitos antes dele, e outros que vieram depois, Eckhout estabeleceu um imaginário utilizando alegorias para retratar as colônias em terras exóticas, influenciando as percepções de colonizadores e dos nativos colonizados. As relações sociais entre os habitantes da colônia são explicadas a partir de elementos visuais: os selvagens Tarairiú, os prestativos Tupis, os vigorosos Africanos e os distintos Mestiços.
Os estudos feitos a partir de sua pesquisa de campo foram romantizados para atender àqueles que decorariam sedes governamentais e residências com suas obras, que as exibiriam em salas destinadas a abrigarem gabinetes de curiosidades. Serviram de propaganda já que representavam a riqueza sob domínio dos holandeses, além de registrar os feitos de Nassau enquanto governante. Convencendo assim os europeus da importância das terras colonizadas e os incentivando a aumentarem seus investimentos na Companhia Holandesa.
Os registros visuais do Brasil holandês de Eckhout foram concebidos a partir da perspectiva colonial europeia, que determinaram quais temáticas eram dignas de serem retratadas e a forma como deveriam ser apresentadas. Concebidos a partir da estética das tradicionais escolas de arte holandesa, que determinaram a composição das cenas e as cores usadas nas pinturas.
Vale ressaltar, no entanto, que apesar de não serem um registro fiel da realidade, ainda podemos reconhecer que o detalhismo e realismo de suas pinturas estabeleceram uma nova maneira de se representar “o desconhecido”. Eckhout não solucionou o problema, mas apontou uma direção para que outros artistas seguissem.
Conteúdos pesquisados:
CHICANGANA-BAYONA, Yobenj Aucardo. Os Tupis e os Tapuias de Eckhout: O declínio da imagem renascentista do índio, 2008.
GASPAR, Lúcia. Alberto Eckhout. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife.
MASON, Peter. Troca e deslocamento nas pinturas de Albert Eckhout de sujeitos Brasileiros, 2001.
OLIVEIRA, Carly Mary S. O Brasil seiscentista nas pinturas de Albert Eckhout e Frans Janszoon Post: Documento ou invenção do Novo Mundo?, 2006.